Muito além da realidade biológica dos homens e mulheres que habitam a terra, as sociedades desde as eras mais antigas se organizaram politicamente afim de regulamentar as relações com a natureza e entre si, porém nem sempre essa articulação garantiu a existência de igualdade entre os viventes, daí, além da classificação natural da vida apresenta-se em diversas fases de nossa história uma secundária divisão entre as pessoas membras da casa comum, o termo que mais nos aproxima desse fato é a divisão de classes.
Considerando o desejo divino de amor em gerar a partir da Terra os seres humanos, podemos concluir que na perfeição da obra da criação nascemos diante da ordem natural e cósmica iguais diante do direito de vida. Nem uma criança recém-nascida, tem consciência do que possui ou não possui, não cogita escolher o berço ou a rua, comer ou passar fome. Na pureza da vida recém gerada encontramos a inocência dos iguais, isso é, a certeza da plenitude da perfeição da vida dada por Deus, é então o processo de socialização que vai dizer mediante suas estruturas de desigualdades os limites de acesso aos bens de consumos indispensáveis para a integridade da dignidade de cada pessoa humana.
Diante do fenômeno da inocência dos iguais é que podemos concluir que a aceitação da desigualdade é imposta paulatinamente na vida dos que a sofrem. Se acreditamos que cada vida nesse mundo primariamente perfeito, é dom de Deus, é Desejo do Divino, se faz necessário buscar a culpabilidade de realidades que destroem essa perfeição ordinária da vida no cosmos. Ao considerarmos a perfeição da obra da criação subtende-se que a natureza é autossustentável, de maneira que há alimento, casa, calor, água, felicidade para todos e que a culpa da fome e demais misérias que desconstroem o direito a plena dignidade localiza-se na forma com que organizamos a regulamentação do acesso aos bens de consumo, e se tratando de estruturas de pecado, aqui pode estar a maior delas: sujeitar iguais a condições desiguais sufocando a divindade escondida dentro de cada ser.
Não existem, portanto, pobres! Existem empobrecidos! Não existem pessoas que não tem o que comer, existem pessoas privadas de acessar o alimento necessário para viver bem! Essa realidade está em função da existência de estruturas empobrecedoras que privam os iguais do direito a vida plena fazendo destes os empobrecidos do mundo. A quantidade de alimentos produzido pelo planeta é sem sobra de dúvida suficiente para alimentar toda a humanidade, o que impede que isso aconteça é que diante da articulação sociopolítica, alguns estão favorecidos ao ponto que acumulam o que não necessitam, privando os demais daquilo que por ordem natural já lhes possui em direito de vida.
Essa constatação quando confrontada com as experiências religiosas e as práticas evangélicas encaminha o coração humano pra um discernimento em relação ao modo de vida e de consumo, fazendo da pratica religiosa incompleta quando não se atenta e se coloca a serviço da desconstrução das estruturas geradoras de desigualdades e na reconstrução da fraternidade para a qual o genes divino nos convoca para a vida.
Muitas vezes ouvimos falar de uma opção preferencial pelos pobres, e essa opção estagnou-se, em muitas situações, nas instituições religiosas como assistencialismo, fazendo-as acreditar que é necessário colocar-se frente aos sofredores como anestesia das dores continuas, e anestesia passa, em alguns casos deixa até sequelas. Uma espiritualidade enraizada não pode se limitar apenas ao encontro com o “pobre”, muito além disso deve questionar o que o empobreceu. Essa tomada de consciência produz uma guinada no jeito de viver e experimentar a relação com Deus, por dois motivos; o primeiro é que nos envolve permanentemente com a dor dos empobrecidos, uma vez que estamos diretamente ligado às alegrias e tristezas de qualquer ser vivente do planeta, de modo que uma parcela, por mais mínima que seja recai sobre cada cidadão do universo; o segundo é que nos impele a desconstruir o sistema que produz empobrecimento, daí a complexidade de abraçar integralmente a fé e talvez a possível maior explicação dos limites entre o que essencialmente compõe a consciência humana e a fidelidade com o projeto do Reino de Deus.
Uma religião que não propõe o que a teologia vai chamar de kenosis, não possui raízes, mas é preciso entender o que é esse rebaixamento, ou envolvimento kenótico com a vida. Trata-se de um retorno à origem da inocência dos iguais, é como retornar ao primeiro choro, que grita pelo abraço da mãe na certeza de que o terá. Essa experiência se faz necessária não apenas entre nós seres humanos, mas também em relação a toda criação, afinal, tudo está interligado. O problema é que a linguagem da desigualdade está incorporada na percepção da normalidade, basta sair nas ruas de grandes centros e perceber a comum cena de pessoas morando na rua e constatar que na maioria das vezes esse contato sensorial não produz nem um ou pouquíssimo estarrecimento na alma.
A luta contra o empobrecimento é sem sombra de dúvidas uma das bases que dão significação aos modelos religiosos, de modo que uma religião que não questiona e intervém na desigualdade produzida pela injustiça é uma religião que não possibilita a coparticipação na edificação do Reino, portanto, trata-se mais uma vez de apenas um corpo inútil diante da dura verdade da vida. Essa missão religiosa pressupõe também uma linguagem que contrasta aquela que expressa o sofrimento dos empobrecidos, o contrário disso é conivência com o mal social que assola milhões de irmãos, e nesse sentido devemos retornar às questões fundamentais que norteiam essa nossa reflexão: o que fazemos? Como fazemos? E porque fazemos?
Na vigência do sistema capitalista há muito mais medo de um assaltante do que de um mendigo, e não devia ser assim, pois não se deve temer o que irrompe a normalidade e sim aquilo que nitidamente é sintoma de uma doença social, mas que caiu na casualidade do dia a dia. Precisamos ativar o modo indignação das posturas religiosas, pois esse estado de espirito de uma pessoa ou comunidade frente as mazelas produzidas pelo desigual caminhar da sociedade representa o primeiro passo de admissão da necessidade de fazer valer a redenção, considerando o processo dela: encarnação, convivência, rebaixamento e elevação dos que estão no plano dos esquecidos e pisoteados.
Se olharmos para a vida de Jesus, veremos que todo o seu encontro pessoal com as diversas personalidades emblemáticas no evangelho, representa uma luta contra o empobrecimento, ora aplainando os que pisoteiam, ora reerguendo os pisoteados. Dos exemplos claros disso é; Zaqueu que precisa descer da arvores e sentar-se à mesa para se dar conta de que é necessário devolver aos empobrecidos o que deles lhes foi tirado e o da mulher pega em adultério, e tendo o messias abaixado a sua condição de condenada se reergue para uma vida nova plenificada pela dignidade não apenas da misericórdia, mas sobre tudo do reestabelecimento sociopolítico.
Com a quantidade de crentes e seguidores do cristianismo o problema do empobrecimento seria facilmente amenizado se todos estes percebem-se que a fé que passa pela indiferença é volátil e ineficaz e aqui tocamos num ponto que compete a moral religiosa refletir: as estruturas de pecados sociais e a maneira com que a indiferença pessoal e comunitária representa a adesão pecaminosa a essas estruturas.
Rebelar-se contra o sistema empobrecedor dos iguais deve ocupar espeço constituinte na ética da religião, pois trata-se de uma rebelião contra a desintegração da vida e uma reconstrução da paz que nunca deveria ter sido interrompida. E não se pode negar a expressiva terminologia “rebelião” , não pelo processo necessário, mas pela legalização e institucionalização dos meios de empobrecimento das massas, reais nos códigos econômicos, administrativos, políticos e educacionais.
Para encontrar o método dessa rebelião é necessário considerar a ordem natural e amorosa da vida; todos os seres são chamados para viver harmonicamente numa lógica divina da estável condição de vida do planeta, e aqui já no início da proposta desponta o primeiro obstáculo: a lógica estável do planeta já foi desafiada e apunhalada, ao mesmo tempo reafirma a necessário compreensão vital, uma questão ecológica que não diz respeito apenas as arvores, os rios, as terras e o animais, mas que compreende o ser humano empobrecido como membro do corpo sofredor do universo. Esse fato aumenta muito a complexidade da situação, pois o empobrecimento já está tão velho que se tornou rígido e causador de mais conflitos no coração da terra. Deste modo creiamos que o mesmo Deus que lacrimeja ao ver desordem da vida, concede a graça necessária para que todos os humanos e humanas assumam e percebam que pertencem também a carne dos sofredores, e enquanto estes haver, a felicidade é impossível.